O TRABALHO NA ESCOLA DE SAMBA E AS FUNÇÕES DE CADA UM
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No sábado último (16/07/16) ao apresentar indicação bibliográfica a sua turma, ressaltou um professor na Pós-Graduação em Figurino e Carnaval: “Ninguém deveria terminar esse curso sem ler este livro!”.
Referia-se ao Livro Desfile na Avenida, trabalho na escola de samba, de Leila Maria da Silva Blass.
Concordo com o Professor Jardel Augusto Lemos, que além de Coreógrafo responsável pela Comissão de Frente da Acadêmicos do Sossego é Mestre em Educação, Cultura e Comunicação/UERJ, Bacharel em Dança/UFRJ e Coordenador da Pós-Graduação Lato Sensu em Estudos Contemporâneos em Teatro e Dança/ UVA - RJ.
O Livro de Blass ressalta a todo instante que “a produção artística de um desfile de Carnaval requer uma multiplicidade e pluralidade de saberes e de fazeres artísticos que pressupõe, como sugere De Certeau (1994), uma arte no seu fazer. Ou seja, “um saber fazer ou dizer”, que pode ser decodificado por outros, apresentando a produção e o desfile de carnaval sempre um caráter coletivo, embora a criação seja, muitas vezes, individual como, por exemplo, a proposta de um enredo que pode ser elaborada por um carnavalesco.” (p.102)
Conforme disseram vários entrevistados naquele estudo, onde constam entrevistas realizadas com carnavalescos do Rio e de São Paulo, entre eles Rosa Magalhães e Joãozinho Trinta, demonstram a necessidade de um carnavalesco se cercar de excelentes profissionais para que possam promover a construção de um enredo.
“Acertado o contrato de trabalho com uma escola de samba”, um carnavalesco pode ou não sugerir um assunto para enredo”, no que passa a listar os temas mais comuns apresentados pelas Escolas de Samba para ao final frisar que “nessa questão, um carnavalesco, ao imaginar um enredo, busca, ao mesmo tempo, as imagens que o permitam narrar esse enredo por meio de códigos verbais e não verbais. Para tanto, escolhe, seleciona certos símbolos que, codificados, possam ser decodificados por quem faz ou assiste às apresentações. A produção artística implica a decomposição de uma narrativa em símbolos a fim de que outros possam ler essa narrativa. E, ao fazê-lo, recompor essa narrativa e decifrar a mensagem de um enredo.
Um carnavalesco destaca, por isso, partes ou “pedaços” de um enredo que devem compor a letra de um samba-enredo e devem ser contemplados na cadência de uma bateria. Certas partes de um samba-enredo se relacionam com as esculturas e com as alegorias, adereços e fantasias. A musicalidade da bateria, além de caracterizar uma escola de samba, dá expressividade ao tamanho, volume e cores das esculturas nas alegorias e dos adereços nas fantasias, seja as das alas de evolução, seja dos destaques”.(p.98-99)
Ressalta ainda a autora que “As atribuições de um carnavalesco podem abranger, desde a concepção plástico-visual das fantasias de alas e das alegorias; a confecção dos protótipos das fantasias de alas com a seleção do material, cores, formas e tamanho dos adereços, além das fantasias dos destaques das alegorias e dos componentes que recebem as suas fantasias da escola de samba, até a produção das alegorias no barracão em todas as fases, tendo ou não a colaboração dos dirigentes de uma agremiação carnavalesca.”(p.101)
É nesse momento que a Agremiação deve aproveitar-se das aptidões pessoais de sua equipe de colaboradores. Além dos profissionais que atuam como contratados, muitos apresentam-se como voluntários para tarefas específicas, como divulgação eletrônica, redação de informes para imprensa, entre outros. A necessidade de compreensão de determinadas técnicas que envolvem a produção de um desfile, bem como sua divulgação, são essenciais.
Blass identifica através de entrevistas e depoimentos que muitos entrevistados declararam que não desenham, nem pintam os croquis das alegorias e das fantasias, contando com profissionais que os apoiam nessa tarefa. Sobre a equipe que os cerca, destaca que “Um carnavalesco pode indicar, ou mesmo escolher, por exemplo, a equipe de escultores, carpinteiros, soldadores, decoradores, técnicos de iluminação ou de efeitos etc para confecção dos carros alegóricos e das equipes de artesãos e de outros profissionais que estão no barracão. O critério decisivo para recrutamento dessas equipes é a experiência com a produção de um desfile de carnaval. Nesse sentido, comentou certa vez uma participante da comissão de carnaval, referindo-se às dificuldades que estava enfrentando nos contratos das equipes de ferragem, solda e carpintaria na cidade de São Paulo, “quem trabalha com portão ou armário, mesmo que seja muito bom, não me interessa. Eles não sabem transformar um desenho em cenário porque tem a pesquisa do material, o tipo de solda, espessura dos ferros a ser usados, o modo de ajustar as partes...” (p.102)
Faz-se necessário esclarecer que os depoimentos foram colhidos no final dos anos 90 e no início desse milênio e, assim sendo, não representam a realidade que hoje pode ser percebida no carnaval paulista, mas nem por isso a obra é menos atual. Identificamos um aspecto que é vivenciado por inúmeras Escolas de Samba em Niterói nesse exato momento, quando se definem as equipes de trabalho e o próprio enredo. Isso porque “Um carnavalesco executa, sem duvida, múltiplas tarefas, desde o gerenciamento das atividades no barracão na construção das alegorias, o acompanhamento dos processos de trabalho nas oficinas onde são confeccionadas as fantasias e comparece aos encontros semanais na quadra, ate o término de um desfile no Sambódromo (BLASS, p.112)”
Continua BLASS sobre o comprometimento da equipe que cerca o carnavalesco e o entrosamento necessário. Discute a questão autoral nos seguintes termos:
A dimensão social da produção artística de um desfile provoca uma indagação em tomo da sua autoria. Se a criação de um enredo viabiliza-se no carnaval, através das atividades de outros profissionais, quem seria o autor do projeto de um desfile de carnaval? Em outras palavras, quem arca com a responsabilidade no interior de uma escola de samba, quando as imagens sonhadas por um carnavalesco para narrar um determinado enredo não encontram expressividade nas fantasias e alegorias confeccionadas e apresentadas em um desfile de carnaval? Quer dizer, se não forem feitas conforme as sugestões do carnavalesco ou ditadas por sua imaginação?
Essas questões remetem para os mecanismos de controle no mercado de emprego do carnaval que são exercidos através de um saber fazer que se comprova na execução prática e na solução dos problemas surgidos no dia-a-dia dos preparativos e mesmo no decorrer de um desfile de carnaval. Cada ação e decisão tomadas por um carnavalesco são ponderadas as consequências e os seus efeitos para o desempenho da escola de samba no concurso anual de Carnaval realizado no sambódromo. Os mesmos critérios perpassam a avaliação dos profissionais envolvidos nessa produção, inclusive, o carnavalesco. (p.103)
Nem tudo são flores nesse período em que se realizam os preparativos para composição da equipe, no que ressalta que:
“As relações entre carnavalesco e as equipes contratadas tornam-se, muitas vezes, tensas e podem influir nas contratações para outro carnaval. Carnavalesco e equipes de artesãos escolhem as escolas de samba com as quais gostariam de trabalhar, mas nem sempre isso acontece. As contratações também dependem das relações de poder que se configuram no interior das escolas de samba. Alguns carnavalescos são, às vezes, identificados com certas agremiações carnavalescas porque permanecem nelas durante anos como, por exemplo, Joãosinho Trinta e a Beija-Flor de Nilópolis. Outros, ao contrário, circulam entre Rio de Janeiro e São Paulo; e entre as escolas de samba que pertencem ao grupo Especial ou ao grupo de Acesso. Essa possibilidade é mais rara porque a transferência e circulação entre escolas de samba têm consequências sobre os rendimentos, prestígio social e reconhecimento do saber fazer de um carnavalesco”. (p.104-105)
Os conflitos e a tensão que acompanham a produção artística dos desfiles expressam também ajustes importantes a serem feitos devido ao caráter coletivo da produção dos desfiles de carnaval na qual se envolve toda a escola de samba e a criação do enredo imaginado pelo carnavalesco ou por uma Comissão de Carnaval, como optam algumas Agremiações
“O funcionamento cotidiano de uma escola de samba está ainda marcado por conflitos e confrontos que envolvem dirigentes e seus assessores; chefes de alas e a comissão de carnaval; o carnavalesco e o Presidente da escola de samba; carnavalesco e os profissionais de carnaval”. Continua, afirmando que “a formação profissional é, basicamente, prática e desenrola-se no barracão e nas oficinas, através da transmissão oral de um conjunto de informações e conhecimentos relativos ao fazer carnaval. Para tanto, as relações com os mais experientes que podem ser os próprios familiares, parentes ou vizinhos são fundamentais. Revela-se, assim, a dimensão pedagógica das escolas de samba como acontece, há anos, na cidade do Rio de Janeiro e cidades vizinhas.”(p.106)
O texto destaca que em todos lugares e em todos momentos transparece a dimensão coletiva do trabalho e do emprego na construção de um desfile de carnaval. Exemplifica que a saída dos carros alegóricos do barracão em direção ao local de apresentação é coordenada pelos membros da Harmonia, sob os olhares atentos do carnavalesco e das equipes de artesãos e profissionais. É assim até hoje, seja este local de apresentação o Sambódromo do Rio de Janeiro ou a Rua da Conceição, em nossa cidade.
Dessa forma, quanto a autoria de um desfile, entendemos que quanto mais humildes forem os envolvidos nesse processo, melhor e mais tranquila será a realização do desfile, afinal, ninguém dentro de uma Escola de Samba é mais ou menos importante.

